Jurisprudência

Aterramento. Área de preservação permanente. Responsabilidade do Município.

TRF-4
Área de preservação permanente

EMENTA: DIREITO ADMINISTRATIVO. DIREITO AMBIENTAL. PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. ÁREAS DE PRESERVAÇÃO PERMANENTE (APPS). ATERRAMENTO. RESPONSABILIDADE DO MUNICÍPIO. REFORMA DA SENTENÇA. 1. Existe um emaranhado de normas ambientais a nível constitucional, legal e infralegal; de âmbito nacional, federal, estadual e municipal, com inúmeros pormenores e sutilezas. 2. É bem verdade que a regra geral em direito ambiental é a responsabilidade objetiva, propter rem, de forma que pouco importa – para a responsabilidade civil de recuperação da área degradada – se os danos foram causados pelo proprietário anterior do imóvel. 3. Caso em que a situação é bastante diversa daquela em que normalmente se aplica a regra de responsabilidade objetiva propter rem, pois não se trata de uma hipótese simples segundo a regra de que um dano causado por proprietário anterior, que degradou o meio ambiente no imóvel hoje de propriedade de outro indivíduo, que deverá então arcar com a responsabilidade civil pelos danos ambientais. 4. Trata-se, no caso, de hipótese em que o dano ambiental foi resultado de aterro realizado pelo Município ao longo da margem do Rio Piçarras. 5. Reforma da sentença, tendo em vista que a obra de aterramento foi de responsabilidade do Município e que a interferência do réu sobre o local foi mínima. (TRF4, AC 5001502-53.2014.4.04.7208, TERCEIRA TURMA, Relator ROGERIO FAVRETO, juntado aos autos em 09/02/2022)

RELATÓRIO

Trata-se de ação civil pública proposta pelo Ministério Público Federal contra José Afonso Silva Maia e Sérgio Luiz Guszak por meio da qual pretende a condenação dos réus (I) a recuperarem a área degradada mediante a apresentação de PRAD – Projeto de Recuperação de Área Degradada; (II) ao pagamento de indenização por danos morais no montante de R$ 5.000,00 a ser revertido ao Fundo de Reconstituição dos bens lesados de Santa Catarina (Lei 7.347/85, artigo 13); (III) o réu José Afonso da Silva Maia a derrubar o muro construído em área de preservação permanente – APP.

Trata-se de imóvel situado no Município Balneário Piçarras/SC. Sustenta que os réus realizaram terraplanagem e supressão de parte do manguezal da Ilha do Socó, área de mata atlântica, sem autorização, soterrando o Rio Piçarras. Diz que o muro construído não respeita a distância legal mínima do rio.

A ação foi proposta inicialmente na Justiça Estadual, em 05/11/2008, na qual deferiu-se o pedido liminar para o fim de determinar aos réus que recuperem a área degradada.

União manifestou interesse no feito por se tratar de área em terras de marinha (evento 9, PROCADM5, págs. 58 e 59).

Vieram os autos à Justiça Federal.

Sobreveio sentença, que julgou o feito nos seguintes termos:

“3. DISPOSITIVO

Ante o exposto julgo parcialmente procedente o pedido formulado na petição inicial, para o fim de condenar os réus José Afonso Silva Maia e Sérgio Luiz Guszak à apresentação e implementação de PRAD – Projeto de Recuperação de Área Degrada para recuperar a área degradada, restrita, no entanto, ao fundo de cada um dos respectivos terrenos de propriedade dos réus (margens do rio Piçarras) – objeto da ação. O PRAD terá por objeto a adoção de medidas para limpeza do local, recuperação da vegetação originária e recomposição do leito do rio, afastada a responsabilidade pela recomposição da área quanto às obras realizadas pelo Município de Balneário Piçarras/SC, na forma da fundamentação.

Fixo o prazo total de 90 (noventa) dias, contados a partir da intimação desta sentença, para a apresentação do plano de recuperação da área degradada – PRAD.

Estabeleço multa diária por eventual descumprimento desta sentença, no valor de R$ 100,00 (cem reais), conforme autoriza o art. 497 do CPC c/c art. 11 da Lei nº 7.347/85, a qual tem incidência imediatamente após ultrapassado o prazo de 90 (noventa) dias acima fixado, que é contado da intimação desta sentença, ficando a exigibilidade da multa condicionada ao trânsito em julgado da presente decisão.Sem custas nem honorários advocatícios (art. 18 da Lei nº 7.347/85).”

Irresignado, apela Sérgio Luis Guszak. Afirma, em suas razões, que, desde os primórdios, se existe um responsável por qualquer dano ambiental no Rio Piçarras ou na Ilha do Socó, este responsável seria o Município de Balneário Piçarras. Alega que houve Laudo Ambiental concluindo que não teria ocorrido dano ambiental.

Sustenta que jamais realizou qualquer obra ou terraplanagem no lote e que, se alguém realizou alguma obra ou terraplanagem no lote, isso foi em momento anterior à sua aquisição por Sérgio, aquisição esta completamente legal, com escritura e Registro de Imóveis.

Refere que o lote se situa às margens do Rio Piçarras e não na Ilha do Socó.

Assevera que a própria Prefeitura Municipal de Balneário Piçarras, a pretexto de reduzir os alagamentos no Bairro Nossa Senhora da Paz, terraplanou e canalizou com manilhas de concreto por dentro do lote de propriedade de Sérgio Luis Guszak, conforme demonstrado por fotografias.

Sustenta que tais informações e tais fotografias comprovariam a responsabilidade do Município de Balneário Piçarras e não do apelante.

Alega que tentou, sem sucesso, denunciar o Município de Balneário Piçarras à lide.

Afirma que, mesmo inocente, plantou sobre o terreno toda sorte de vegetação própria do local, com contenção das margens que a Prefeitura havia cavocado, como demonstra a vistoria que depois foi feita pelo Oficial de Justiça no local, com certidão em fls. 212 – PROCADM5 – evento 9 – e fotografias de fls. 213 a 223.

Assevera que cumpriu a ordem judicial e, mesmo sem ter dado causa ao dano, replantou todo o local, que até a data de hoje vem cuidando religiosamente, a fim de preservar a natureza danificada pela Prefeitura de Balneário Piçarras, como comprova, sem qualquer sombra de dúvidas.

Refere que, depois disso, o processo se tornou Federal e Sérgio voltou a se manifestar no evento, mas a perícia por ele requerida não foi deferida. Vieram os autos a esta Instância. Em Parecer, nesta Instância, manifestou-se o Ministério Público Federal pelo desprovimento da apelação.

É o relatório.

VOTO

Considerações iniciais. Áreas de preservação permanente.
Com a Constituição Federal de 1988 passou-se “do estágio de miserabilidade ecológico-constitucional” para o de “opulência ecológico-constitucional”, segundo José Joaquim Canotilho e José Rubens Leite. (in: CANOTILHO, José Joaquim Gomes; LEITE, José Rubens Morato (Org.). Direito constitucional ambiental brasileiro. 6. ed., rev. São Paulo: Saraiva, 2015, pg. 112.).

As áreas de preservação permanente, por decorrerem diretamente de lei, não requerem a sua inclusão em uma área de especial proteção ambiental prevista em uma das doze espécies de unidade de conservação.

Perceba-se que sua função é diversa: não pertencem necessariamente, digamos, a um parque nacional ou a uma estação ecológica, mas, em cada lugar em que se manifestarem de fato, serão protegidas por desempenharem alguma função ambientalmente relevante.

A Lei nº 12.651/12 (chamada de Novo Código Florestal) prevê, em seu artigo 4º:

“Art. 4º Considera-se Área de Preservação Permanente, em zonas rurais ou urbanas, para os efeitos desta Lei:

I – as faixas marginais de qualquer curso d’água natural perene e intermitente, excluídos os efêmeros (…);

I – as áreas no entorno dos lagos e lagoas naturais (…);

III – as áreas no entorno dos reservatórios d’água artificiais, decorrentes de barramento ou represamento de cursos d’água naturais, na faixa definida na licença ambiental do empreendimento;

IV – as áreas no entorno das nascentes e dos olhos d’água perenes, qualquer que seja sua situação topográfica, no raio mínimo de 50 (cinquenta) metros;

V – as encostas ou partes destas com declividade superior a 45º , equivalente a 100% (cem por cento) na linha de maior declive;

VI – as restingas, como fixadoras de dunas ou estabilizadoras de mangues;

VII – os manguezais, em toda a sua extensão;

VIII – as bordas dos tabuleiros ou chapadas, até a linha de ruptura do relevo, em faixa nunca inferior a 100 (cem) metros em projeções horizontais;

IX – no topo de morros, montes, montanhas e serras, com altura mínima de 100 (cem) metros e inclinação média maior que 25º , as áreas delimitadas a partir da curva de nível correspondente a 2/3 (dois terços) da altura mínima da elevação sempre em relação à base, sendo esta definida pelo plano horizontal determinado por planície ou espelho d’água adjacente ou, nos relevos ondulados, pela cota do ponto de sela mais próximo da elevação;

X – as áreas em altitude superior a 1.800 (mil e oitocentos) metros, qualquer que seja a vegetação;

XI – em veredas, a faixa marginal, em projeção horizontal, com largura mínima de 50 (cinquenta) metros, a partir do espaço permanentemente brejoso e encharcado.”

A Constituição de cada Estado da federação pode – como comumente acontece – adicionar outras hipóteses à lista de APPs a serem consideradas como tal em seu território.

Ainda conforme doutrina de Paulo Affonso Leme Machado:

“V – Área de preservação permanente – APP
1. Conceito e características
“Área de Preservação Permanente-APP: área protegida, coberta ou não por vegetação nativa, com a função ambiental de preservar os recursos hídricos, a paisagem, a estabilidade geológica e a biodiversidade, facilitar o fluxo gênico de fauna e flora, proteger o solo e assegurar o bem-estar das populações humanas” (art. 3º, II, da Lei 12.651/2012).

A APP é uma área com quíntupla característica:

(a) É uma área, e não mais uma floresta (no Código Florestal de 1965, com a redação original, tratava-se de “Floresta de Preservação Permanente”). A área pode ou não estar coberta por vegetação nativa, podendo ser coberta por vegetação exótica.

(b) A APP não é uma área qualquer, mas uma “área protegida”. A junção destes dois termos tem alicerce na Constituição da República, que dá incumbência ao Poder Público de “definir, em todas as unidades da Federação, espaços territoriais e seus componentes a serem especialmente protegidos, (…) vedada qualquer utilização que comprometa a integridade dos atributos que justifiquem sua proteção” (art. 225, § Ia, III).

(c) A área é protegida de forma “permanente”, isto é, não episódica, descontínua, temporária ou com interrupções. O termo “permanente” deve levar a um comportamento individual do proprietário, de toda a sociedade e dos integrantes dos órgãos públicos ambientais no sentido de criar, manter e/ou recuperar a APP.

(d) A APP é uma área protegida com funções ambientais específicas e diferenciadas, apontadas na Lei 12.651/2012: função ambiental de preservação, função de facilitação, função de proteção e função de asseiiiramento. As funções ambientais de preservação abrangem os recursos hídricos, a paisagem, a estabilidade geológica e a biodiversidade. A APP tem a função de facilitar o fluxo gênico de fauna e flora, sendo que essa transmissão genética não é exclusiva dessa área protegida. A APP visa a proteger o solo, evitando a erosão e conservando sua fertilidade. Não se pode negligenciar o asseguramento do bem-estar das populações humanas, isto é, da felicidade e da prosperidade das pessoas, entre as quais estão os proprietários e os trabalhadores da propriedade rural onde se situa a APP (art. 186, IV, da Constituição da República).

(e) A supressão indevida da vegetação na APP obriga o proprietário da área, o possuidor ou o ocupante, a qualquer título, a recompor a vegetação; e essa obrigação tem natureza real. Essa obrigação transmite-se ao sucessor em caso de transferência de domínio ou de posse do imóvel rural.

Cabe examinar as conseqüências jurídicas do teor do art. 4º, caput, ao dizer: “Considera-se Area de Preservação Permanente, (…) para os efeitos desta Lei” – Lei 12.651/2012 (que não se autodenominou “Código”, conforme constava na redação da anterior Lei 4.771/1965). A APP é considerada existente, ou como devendo existir, desde que haja a ocorrência de determinadas situações fáticas. Não é necessária a emissão de qualquer ato do Poder Executivo (Federal, Estadual, do Distrito Federal ou Municipal) para que haja uma APP nos moldes previstos pelo art. 4º da lei. Há autoaplicabilidade da própria lei, não se exigindo regulamentação para sua efetividade nos casos desse artigo. Se dúvidas surgirem, serão problemas de medição, pois a localização e as obrigações de manutenção, de reparação, de uso, ou até a possibilidade de supressão da vegetação, decorrem da própria lei.” MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito ambiental brasileiro. 21. ed. rev., ampl. e atual. São Paulo: Malheiros, 2013.

As APPs decorrem diretamente de lei, sem necessidade de criação de uma unidade de conservação. Isto é: decorrem de uma situação fática. Onde quer que se constate uma das hipóteses legais vigentes aplicáveis à região para constatação de APP, haverá uma APP.

Dano ambiental. Responsabilidade propter rem.
É bem verdade que a regra geral em direito ambiental é a responsabilidade objetiva, propter rem, de forma que pouco importa – para a responsabilidade civil de recuperação da área degradada – se os danos foram causados pelo proprietário anterior do imóvel.

No caso concreto, entretanto, a situação é bastante diversa daquela em que normalmente se aplica tal regra.

Não se trata de uma hipótese simples segundo a regra de que um dano causado por proprietário anterior, que degradou o meio ambiente no imóvel hoje de propriedade de outro indivíduo, que deverá então arcar com a responsabilidade civil pelos danos ambientais.

Trata-se, no caso concreto, de hipótese diversa e muito mais grave – o dano ambiental foi resultado de aterro realizado pelo Município ao longo da margem do Rio Piçarras:

Não se trata de terreno na própria Ilha do Socó. Conforme se vê claramente na imagem, a ilha encontra-se em preservação ambiental. Esse não é o caso da margem do rio em que se situa o imóvel, pois o terreno se encontra em região urbanizada, concebida pelo Poder Público.

Assim, se por um lado é certo que vigora a regra de responsabilidade objetiva propter rem quanto ao dano civil ambiental e ao dever de recuperação do local degradado, por outro deve-se atentar ao fato de que a situação constatada no caso concreto foge ao escopo da norma.

A regra que impõe a responsabilidade propter rem em caso de dano ambiental não pode ser estendida para uma hipótese em que o terreno é fruto de intensa intervenção pela própria municipalidade, que aterrou o local – em área urbana consolidada – e conferiu todos os documentos ao atual proprietário, com aparência de legitimidade e de regularidade do local.

Assim, a questão vai além de uma simples alegação de ausência de responsabilidade por fato causado por um proprietário anterior – como costuma ser o caso – mas de um proprietário que adquiriu um bem fruto da ação irregular do poder público e dos documentos conferidos pelo mesmo ente público, para então descobrir que será responsabilizado por atos que vão muito além do que a intervenção que um proprietário poderia realizar sobre o imóvel, e que são de responsabilidade do Município.

Diante desse quadro, condenar os indivíduos que adquiriram os imóveis no local à adoção de medidas para limpeza do local, recuperação da vegetação originária e recomposição do leito do rio é juridicamente desproporcional, consistindo em violação de boa-fé.

Até mesmo a condenação do proprietário à realização e à execução de PRAD resulta em responsabilidade desproporcional do indivíduo face ao impacto de suas ações, quando considerada a extensão das intervenções deliberadas do Município no local.

Reitero que a regra geral da responsabilidade objetiva propter rem segue aplicável. No caso, ao contrário, trata-se de hipótese diversa, em que as circunstâncias concretas não ocasionam a aplicação de tal preceito, mas revelam que a responsabilidade recai sobre o Município.

Outrossim, insta referir que se trata de zonas urbana consolidada e antropizada.

Impõe-se, para solucionar o conflito, sopesar-se, de um lado, a regra da supremacia do meio ambiente, mesmo em situações em que haja efetiva configuração do fato consumado, e, do outro, a aplicabilidade dos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade ao caso concreto.

De fato, de acordo com a prova coligida aos autos, verifica-se que, também, em terrenos vizinhos, o local está povoado, com instalações de água e luz, intervenção humana e da grande descaracterização do ambiente já existente há anos, com outros imóveis em situação semelhante na vizinhança.

Conclui-se, assim, pelo afastamento das condenações impostas ao réu/apelante.

Conclusão.
Não se trata de hipótese de responsabilidade propter rem por dano ambiental, tendo em vista que o dano ambiental foi resultado de aterro realizado pelo Município ao longo da margem do Rio Piçarras.

Afastamento das condenações impostas ao apelante.

Reforma da sentença para julgar improcedente a ação civil pública em face do apelante.

Sem honorários, pois se trata de ação civil pública ajuizada pelo Ministério Público Federal (art.18 da Lei 7.347/85).

Dispositivo.
Ante o exposto, voto por dar provimento à apelação.

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