PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. AMBIENTAL. PROLAÇÃO DE DECISÃO SURPRESA. OCORRÊNCIA. VIOLAÇÃO DO PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO E DA AMPLA DEFESA. CERCEAMENTO DE DIREITO CARACTERIZADO. SENTENÇA ANULADA.
1. Consoante entendimento desta Corte, a proibição da denominada decisão surpresa – que ofende o princípio previsto no art. 10 do CPC/15 – refere-se à questão nova, não aventada pelas partes em Juízo, sendo certo que, em última análise, tal instituto se traduz em uma garantia das partes de poder influir efetivamente no provimento jurisdicional e, por conseguinte, conferir máxima eficácia aos princípios do contraditório e da ampla defesa ( AgInt no AREsp 1363830/SC, Rel. Ministro Marco Buzzi, Quarta Turma, julgado em 31/05/2021, DJe 04/06/2021).
2. Nos termos do artigo 9º do CPC, não se proferirá decisão contra uma das partes sem que ela seja previamente ouvida.
3. Enseja cerceamento do direito defesa, por violação ao princípio do contraditório e da ampla defesa contido no inciso LV do art. 5º da Constituição, a prolação de sentença sem oportunizar à parte contrária o direito de se manifestar sobre documento que teria aptidão de embasar ou influenciar no provimento judicial proferido em seu desfavor.
4. Hipótese em que, juntado aos autos laudo pericial elaborado pelo MPF e sem que fosse oportunizado à requerida a possibilidade de se manifestar sobre ele, ato contínuo foi proferida sentença, julgando procedente o pleito autoral, fundamentado no referido documento. 5. Apelação a que se dá provimento, para anular a sentença e determinar o retorno dos autos o juízo de origem.
(TRF-1 – AC: 10014326120184014100, Relator: DESEMBARGADORA FEDERAL DANIELE MARANHÃO COSTA, Data de Julgamento: 06/10/2021, QUINTA TURMA, Data de Publicação: PJe 14/10/2021 PAG PJe 14/10/2021 PAG)
RELATÓRIO
Trata-se de apelação interposta por Rondônia Comércio de Minérios Ltda. contra sentença que, proferida nos autos da ação civil pública proposta pelo Ministério Público Federal, julgou procedente o pleito autoral para condenar a requerida a “RECUPERAR a área degradada identificada no Laudo nº 049/2018 SETEC/SR/PF/RO, apresentando a SEDAM, no prazo de 60 (sessenta) dias, Plano de Recuperação Ambiental – PRAD, que, após aprovação pela entidade ambiental, deverá ser implementado pelo requerido no prazo de até 120 (cento e vinte) dias” e “PAGAR ao Fundo Nacional de Direitos Difusos, a título de dano moral coletivo, a importância de R$100.000,00 (cem mil reais), acrescidos de correção monetária a partir da data da presente sentença e juros de mora a partir do início da exploração ilegal, nos índices fixados no Manual de Cálculos da Justiça Federal”.
Essa solução foi empreendida com o fundamento de que a empresa requerida teria explorado ilegalmente ampla área, causando danos ambientais de grande monta e, sob diversos aspectos, irreversíveis, já que envolveria a extração de minérios do solo que não poderão ser recompostos.
Sustenta a apelante, preliminarmente, a nulidade da sentença por cerceamento do direito de defesa, sob o argumento de que não lhe teria sido oportunizada manifestação acerca de novos documentos juntados aos autos e que teriam sido tomados em consideração pela sentença para julgar procedente o pleito do MPF.
No que tange ao mérito, aduz que o suposto dano ambiental, decorrente da extração de recursos minerais (granito) sem licença de operação não alcançaria a área de 20,42ha, conforme sustentado pelo MPF, mas somente 6,69ha. Diz, ainda, que, quando da realização da perícia técnica, na área já estaria ocorrendo exploração mineral desde 10/2008, mediante Guias de Utilização e Licenças de Operações, constantes do Cadastro de Minério.
Requer, ao final, o provimento da apelação, para acolher a preliminar de cerceamento de defesa e, assim, anular a sentença recorrida, e, em caso de não acolhimento da preliminar, no mérito, o provimento do recurso para reformar a sentença, adequando a condenação em valores razoáveis diante da correta dimensão da área explorada.
Foram apresentadas contrarrazões.
O MPF/PRR da 1ª Região opiou pelo provimento do recurso para cassar a sentença recorrida.
É o relatório.
VOTO
Presentes os pressupostos de admissibilidade, conhece-se do recurso.
A questão devolvida a esta Corte versa sobre a ocorrência de cerceamento do direito de defesa e, quanto ao mérito, a efetiva amplitude do dano ambiental causado pela apelante.
No que tange à preliminar, razão assiste à apelante.
Isso porque, a toda evidência, a sentença violou o direito da requerida, ora apelante, ao pleno exercício do seu direito de defesa, na medida em que, apresentada a contestação, na qual, dentre outras matérias de defesa, também foi impugnado o valor da causa, sob o argumento de excessividade da indenização por dano moral coletivo, pois não guardaria relação com efetivo dano causado, e por não ter sido indicada pelo MPF qual seria a base (unidade) e o valor da multa que estaria sendo perseguida, requisitos necessários, segundo a requerida, para se mensurar sua adequação. Também foi apresentado com a contestação o Projeto de Recuperação de Área Degreda – PRAD. Ato contínuo, o juízo de 1º grau determinou a intimação do MPF para manifestação (id 110835885). Ao peticionar nos autos, o MPF requereu a intimação do IBAMA, a fim de que se manifestasse quanto ao PRAD apresentado, e requereu a dilação do prazo para manifestação quanto à impugnação ao valor da causa, “(…) tendo em vista a necessidade de aguardar o resultado da perícia solicitada ao Setor Pericial vinculado a esta Procuradoria da República (Pedido nº 692/2020)” (id 110835887). Todas as providências foram deferidas pelo juízo de 1º grau (id 110835888).
Na sequência, o MPF apresentou nova manifestação nos autos, na qual sustentou a manutenção do dano moral coletivo em R$ 100.000,00, indicando como fundamento de seu pleito no Laudo Técnico nº 881/2020-CNP/SPPEA, produzido pela própria Secretaria de Perícia, Pesquisa e Análise da Procuradoria Geral da República (id 110835891). O IBAMA também se manifestou nos autos favoravelmente ao PRAD apresentada pela requerida (id 110835893).
Ocorre que, sem que fosse oportunizada à requerida a possibilidade de se manifestar sobre o Laudo Técnico nº 881/2020-CNP/SPPEA, apresentado pelo MPF, o juízo de 1º grau proferiu sentença, julgando antecipadamente a lide, e acolheu os argumentos deduzidos pelo MPF em sua última manifestação para fundamentar a condenação da requerida ao pagamento de indenização por dano moral coletivo no valor de R$ 100.000,00 (cem mil reais). Para que não pairem dúvidas sobre o ocorrido, cito o seguinte excerto da sentença:
O montante estimado pelo Ministério Público Federal é razoável, assumindo proporção modesta em relação ao lucro obtido ilicitamente pela empresa com a degradação ambiental, razão pela qual o adoto em sua inteireza.
É por demais relevante destacar que os questionamentos deduzidos pela requerida, em sede de contestação, acerca da ausência de indicação dos parâmetros utilizados pelo MPF para justificar o valor da indenização por dano moral coletivo pleiteada, qual seja, R$ 100.000,00 (cem mil reais), foram esclarecidos com amparo no Laudo Técnico nº 881/2020-CNP/SPPEA, ao qual não foi franqueado acesso à requerida antes da prolação da sentença. Para melhor compreensão, vejamos os argumentos apresentados pelo MPF e que foram acolhidos pela sentença “em sua inteireza”: (…)
Constata-se ter sido deferido o pedido formulado por este órgão ministerial (ID 211543356), tendo sido concedido prazo de 30 dias para manifestação quanto à impugnação ao valor da causa formulada em contestação.
De modo a subsidiar a manifestação quanto à citada impugnação, foi requisitada a elaboração de laudo pelo setor pericial da Procuradoria-Geral de República, que se baseou de documentos extraídos destes autos, especialmente do Laudo de Perícia Criminal Federal (LAUDO) 049/2018-SETEC/SR/PF/RO.
Esta Procuradoria apresentou alguns quesitos ao Perito designado, dentre os quais: “Qual o valor estimado do dano ambiental decorrente da conduta da empresa requerida, considerando o teor do LAUDO Nº 049/2018 – SETEC/SR/PF/RO, produzido no bojo do IPL nº 121/2017?”.
Em resposta, foram prestados esclarecimentos quanto ao método de valoração ambiental prescrito pela ABNT, bem como apresentou-se a estimativa de que entre 14/08/2016 e 27/09/2017, ocorreu a lavra de 3.000m² ou 7.680 toneladas de granito para revestimento, irregularmente, na área
Assim, indica o Laudo que:
(…) o valor do bem mineral lavrado irregularmente nas proximidades do local objeto da Notificação 20618/E do Ibama, situado no polígono minerário 300.759/2011, estimado em 7.680 toneladas, conforme já descrito, é de R$ 2.788.992,00 considerando o valor de R$ 363,15 por tonelada de rocha ornamental. (…)
Registra-se, ainda, que houve realização de aproveitamento de granito na área do processo minerário 886.114/2003, durante período em que inexistia licença ambiental válida para a atividade (entre 20/10/2010 e 03/04/2014).
Adotando-se o mesmo procedimento de determinação de valor utilizado para a área minerada no título 300.579/2011, estima o laudo que “o minério extraído das frentes de exploração ilustradas na Figura 3, no polígono minerário 886.114/2003, entre entre 20/10/2010 e 03/04/2014, período em que a atividade não possuía licença de operação, tenha valor de R$ 12.643.430,40”.
Pois bem.
Verifica-se que em sua impugnação ao valor da causa, a empresa alegou que o valor atribuído ao dano moral coletivo é excessivo e não guarda relação com o efetivo dano causado. Salienta a demandada que não existe unidade de conservação ou outra similar que tenha sido injustamente prejudicada e que a exploração ocorreu no domínio do processo minerário 886.114/2003.
Ademais, aduz ser necessário esclarecer a base (unidade) e valor da multa que está sendo perseguida, para só então ser possível mensurar sua adequação.
Diante dos esclarecimentos obtidos a partir do Laudo Pericial anexo, não se sustenta o argumento de que dano moral coletivo arbitrado em R$ 100.000,00 é excessivo.
Isto porque, considerando tão somente a exploração irregular promovida no polígono minerário 886.114/2003, entre 20/10/2010 e 03/04/2014, período em que a atividade não possuía licença de operação, estima-se que o minério extraído tenha valor de R$ 12.643.430,40. (…)
Vê-se, assim, que, ao arrepio da norma inserta no artigo 9º do CPC, segundo a qual “não se proferirá decisão contra uma das partes sem que ela seja previamente ouvida”, o juízo de 1º grau proferiu a sentença sem que fosse ouvida a parte contrária acerca do Laudo Pericial trazido aos autos pelo MPF, ensejando, assim, a toda evidência, cerceamento do direito defesa, por violação ao princípio do contraditório e da ampla defesa contido no inciso LV do art. 5º da Constituição.
Aliás, tal compreensão também foi alcançada pelo próprio Ministério Público Federal que atua neste Tribunal, conforme consignado no parecer apresentado pela Procuradoria Regional da República da 1ª Região, “na espécie, houve sim cerceamento de defesa, de sorte que a cassação da r. sentença é medida salutar, com o retorno dos autos à origem, para regular processamento. Ademais, tendo em vista que a empresa recorrente questiona peremptoriamente o tamanho da área explorada e a quantidade de minério extraído, denota-se recomendável, após sua manifestação acerca do documento olvidado, que seja aberta a instrução probatória, para os devidos fins”. (g.n.)
Consoante respeitável doutrina [1], “este dispositivo, juntamente com o CPC 10, veda a chamada decisão surpresa, a qual se baseia em fatos ou circunstâncias que não eram de conhecimento da parte prejudicada pela mesma decisão. Também essa vedação decorre logicamente do princípio do contraditório, bem como, também, do princípio do due process of law (Nery. Princípios13, n. 24.3, p. 265). É bom lembrar que o juiz deve zelar pela observância do contraditório ( CPC 7.º), razão pela qual não pode negar ou desprezar a ouvida da parte em nenhuma hipótese, exceto nos casos especificados pelo CPC 9.º (medida de urgência ou risco de perecimento de direito)”.
Igualmente, já decidiu o Superior Tribunal de Justiça que, “consoante entendimento desta Corte, a proibição da denominada decisão surpresa – que ofende o princípio previsto no art. 10 do CPC/15 – refere-se à questão nova, não aventada pelas partes em Juízo, sendo certo que, em última análise, tal instituto se traduz em uma garantia das partes de poder influir efetivamente no provimento jurisdicional e, por conseguinte, conferir máxima eficácia aos princípios do contraditório e da ampla defesa” ( AgInt no AREsp 1363830/SC, Rel. Ministro Marco Buzzi, Quarta Turma, julgado em 31/05/2021, DJe 04/06/2021).
Tudo considerado, a única solução jurídica cabível é a anulação da sentença recorrida, com determinação de retorno dos autos ao juízo de origem, para que haja a intimação da requerida acerca dos documentos juntados aos autos pelo MPF antes da prolação da sentença.
Dispositivo
Ante o exposto, dou provimento à apelação para anular a sentença e determinar o retorno dos autos ao juízo de origem, nos termos da fundamentação supra.
É como voto.