Contrassenso judicial: embargo ambiental prescrito que permanece em vigor

Auto de infração ambiental, Embargo ambiental

No exercício da profissão, o advogado ambiental lida com diversas dissonâncias na subsunção das normas administrativas aplicáveis ao direito ambiental. Se de um lado há hermeneutas do direito que visam à proteção ambiental, ainda que em interpretações que resvalem nas normas e princípios aplicáveis ao caso, de outro, há aqueles que buscam o equilíbrio e a harmonização entre a proteção ambiental e a manutenção da lógica e da coerência do regime jurídico administrativo.

Isso porque, em um Estado Democrático de Direito, a previsibilidade dos efeitos jurídicos que exsurgem dos acontecimentos fáticos é consequência natural, já que o legislador, imbuído da legitimidade que a democracia lhe confere, elabora as normas prévias que regerão e regularão a vida social.

É dizer: ocorrida a hipótese de incidência no mundo dos fatos e havendo a adequação típico-normativa, torna-se imperiosa a aplicação das normas previamente criadas para aquela situação, em respeito ao Estado Democrático de Direito. Mas, nem sempre é assim, e aqui há inúmeros fatores: ativismo judicial, posicionamento pessoal e clamor social.

Dito isto, o fato que aqui se busca debater é o regime jurídico administrativo dos atos de poder de polícia em infrações ambientais e a prescrição dos atos que materializam o poder punitivo estatal, em especial o embargo, com base na Lei 9.873/99, e as medidas que visam à reparação do dano ambiental (mais precisamente quais são as medidas que podem obrigar o infrator a reparar o dano ambiental), de modo que, no curso do presente artigo, o leitor chegará ao “curioso paradoxo” do ato administrativo declarado prescrito pelo judiciário mas que, aos olhos do julgador, deve permanecer em vigor.

Pois bem. Inicialmente, devemos ter em mente que o direito administrativo sancionador, do qual origina o poder de polícia, deve ter suas medidas de aplicação previstas em lei. Ou seja: o preceito primário, que é a descrição da hipótese fática considerada como infração administrativa ambiental, bem como o preceito secundário, consubstanciada nas medidas que a administração pública pode tomar quando uma infração ambiental é cometida, a fim de aplicar a sanção administrativa.

Tal necessidade decorre do princípio da legalidade, corolário do Estado Democrático de Direito e princípio basilar do direito administrativo, prevendo as hipóteses em que a Administração pode agir e como agir contra um particular em prol do interesse social. Assim, tal qual no direito penal, o princípio da tipicidade também se aplica ao direito administrativo sancionatório ambiental, cujas regras são aquelas previstas na Lei 9.605/98.

Dito isto, da mesma maneira que ocorre no direito penal, no direito administrativo sancionador também incidem as regras de prescrição da pretensão punitiva estatal, conforme determina a Lei 9.873/99. Isso decorre da necessidade de respeitar o princípio da razoável duração do processo. É fato que antes da edição do Decreto 6.514/08 havia uma indagação sobre a aplicação da referida lei nos processos decorrentes de infrações ambientais.

Entretanto, mesmo sem disposição expressa nas legislações ambientais, a norma legal era aplicada. Hoje não se tem mais dúvidas, já que houve a regulamentação da aplicabilidade do prazo prescricional de apuração de infrações ambientais no Decreto 6.514/08, reproduzindo em grande parte a Lei 9.873/99.

A intenção do instituto da prescrição, previsto na Lei 9.873/99, cuja regulamentação de sua aplicação no processo administrativo ambiental se dá no artigo 21 do Decreto 6.514/2008, é nitidamente impedir que os processos instaurados em razão do cometimento de infrações ambientais tramitem por tempo indeterminado, impondo ao administrado dúvidas e temores por longo período, o que contraria claramente o inciso LXXVIII do artigo 5º da Constituição Federal, que é expressa em assegurar a todos, no âmbito judicial e administrativo, a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação.

Esclarece-se, ainda, que de análise de inúmeros processos administrativos ambientais pelo autor deste texto, é comum verificar que a administração despache ou efetivamente impulsione o processo quando está perto de completar três anos sem qualquer movimentação.

Tal despacho se dá com o fito único de interromper a prescrição intercorrente trienal, em total vilipêndio ao princípio da razoável duração do processo. Salutar mencionar que tal prática corriqueira do IBAMA e das Secretarias de Meio Ambiente não só violam a razoável duração do processo, mas também a presunção de inocência, já que mantem o nome do infrator em cadastros restritivos, bem como o expõe em lista pública de áreas embargadas, antecipando a sanção final.

Assim, nos termos do art. 21 do Decreto 6.514/08, transcorridos mais de cinco anos sem quaisquer atos interruptivos ou, ficando o processo paralisado por três anos sem quaisquer despachos ou julgamento, a prescrição deve ser reconhecida.

O fato é que dificilmente a administração reconhece a prescrição e, como bem disse Curt Trennepohl, talvez a obrigação de apurar a responsabilidade do servidor pela inércia processual seja o motivo de a administração não a reconhecer, obrigando o administrado a buscar as vias judiciais para que seja reconhecido este direito (Trennepohl, 2021). Aqui não nos ateremos à análise da configuração da prescrição, mas sim os seus efeitos sobre os atos sancionatórios.

Sobre este ponto, e aqui reafirmo a boa doutrina e a jurisprudência, é hialino que tal norma prescricional possui o efeito de atingir tão somente as sanções impostas administrativamente, previstas no artigo 72 da Lei 9.605/98, quais sejam: I – advertência; II – multa simples; III – multa diária; IV – apreensão dos animais, produtos e subprodutos da fauna e flora, instrumentos, petrechos, equipamentos ou veículos de qualquer natureza utilizados na infração; V – destruição ou inutilização do produto; VI – suspensão de venda e fabricação do produto; VII – embargo de obra ou atividade; VIII – demolição de obra; IX – suspensão parcial ou total de atividades; XI – restritiva de direitos.

Tal afirmação é reforçada pelo §4º do artigo 21 do Decreto 6.514/08, in verbis: a prescrição da pretensão punitiva não elide a obrigação de reparar o dano ambiental. Aqui é salutar esclarecer que a norma de regência não fez ressalva: a prescrição não elide, tão somente, a obrigação de reparar o dano. Assim, em um típico caso de desmatamento, operada a prescrição do auto de infração ambiental, a multa e o termo de embargo cautelar ali aplicado serão fulminados.

Ocorre que o Poder Judiciário, por diversas vezes, cai em contrassenso: declara a prescrição do auto de infração, mas entende que tal reconhecimento não implica no levantamento do termo de embargo ou de outras sanções, tal como a apreensão, em total dissonância com as Leis 9.873/99 e 9.605/98, bem como o próprio Decreto 6.514/08.

Este, certamente, é o tipo de decisão que mais me intriga, pois há a aniquilação do regime jurídico administrativo em prol de uma visão protecionista, mesmo havendo os meios jurídicos adequados para concretização da proteção ambiental.

Abaixo, o trecho de uma decisão judicial que nos interessa ao presente artigo:

Com feito, a prescrição não tem o condão de, por si só, gerar a suspensão do termo de embargo.

Isso porque o embargo tem natureza autônoma em relação à multa, na medida em que sua função principal é permitir a regeneração do dano ambiental causado, cuja obrigação de reparação é propter rem, inclusive.

Assim, ainda que esteja prescrita a pretensão punitiva estatal em relação à multa, nada impede a permanência do embargo a fim de garantir a regeneração da área danificada, já que se trata de medida preventiva da qual a Administração lança mão, no exercício de seu poder de polícia, com o fito de evitar o prolongamento de ação lesiva e de danos ao meio ambiente proveniente de atividade sem autorização ou em desacordo com ela.

Enquanto não recuperada a vegetação degradada, é legitima a conservação autônoma do embargo sobre a área.

Pensar o contrário seria admitir, em tese, que o simples decurso do tempo fosse capaz de afastar qualquer proteção ambiental estatal sobre área degradada, legitimando, com isso, a manutenção do dano ad eternum. Seria o mesmo que se admitir a existência de fato consumado na degradação ambiental, permitindo, assim, a continuidade do dano pelo decurso do tempo, sem possibilidade de intervenção de natureza administrativa para reverter a situação. Tal entendimento é inadmissível quando o assunto é meio ambiente, já tendo o Superior Tribunal de Justiça consolidado, na Súmula 613, a premissa de que a teoria do fato consumado não se aplica em tema de direito ambiental.

Importante acrescentar que, conforme leciona PAULO AFFONSO LEME MACHADO (2003, p. 299), “das sanções previstas no artigo 72 da Lei n. 9.605/98, somente a multa simples utilizará o critério da responsabilidade com culpa; e as outras nove sanções, inclusive a multa diária, irão utilizar o critério da responsabilidade sem culpa ou objetiva, seguindo o sistema da Lei n. 6.938/81, onde não há necessidade de serem aferidos o zelo e a negligência do infrator submetido ao processo.” Esta é a interpretação que se coaduna com o sistema erigido pela legislação protetiva ambiental, sendo que as demais medidas, como o embargo, a apreensão de bens utilizados para cometimento de ilícitos, multa diária, devem permanecem inalteradas.

Assim, a prescrição tem o condão de extirpar do ordenamento tão somente a sanção pessoal, ou seja, a multa simples propriamente dita. Os demais efeitos ocasionados pela autuação permanecerão inalterados em prol da proteção do meio ambiente.

Em conclusão, embora conheça a prescrição em relação à multa ambiental, o embargo permanece lídimo enquanto não comprovada a recuperação do dano ambiental. (Autos 1001644-79.2022.4.01.3603, 25/04/2022)

Lendo tal decisão, verifica-se uma grande confusão feita pelo intérprete judicial com os institutos da prescrição das sanções administrativas e a responsabilidade civil pela reparação do dano ambiental.

Se de um lado é nobre o entendimento de que a área degradada deve permanecer embargada indefinidamente – imprescritível – em prol da recuperação da área degrada, doutro, verifica-se a implantação do caos. É que há, nitidamente, uma colisão de tal interpretação com as regras que balizam o regime jurídico-administrativo, bem como com as regras e procedimentos de recuperação do meio ambiente. O mesmo se pode dizer da interpretação de que até mesmo os bens apreendidos devam permanecer com o Estado em caso da ocorrência da prescrição das sanções administrativas, criando, por meio de decisão judicial, a regra da imprescritibilidade das sanções ambientais.

Nesta interpretação, por exemplo, um caminhão apreendido carregando toras de madeira com documentação irregular ou, ainda, um veículo apreendido em local de desmatamento, ainda que não utilizado para perpetração da infração, mas constrito pela autoridade ambiental, se acaso operada a prescrição processual, deverá permanecer no poderio estatal, consubstanciando a verdadeira inquisição, já que é antecipação de possível pena – prescrita e que sequer foi confirmada – violando, além da razoável duração do processo, o princípio da presunção de inocência.

O fato é que não se mostra nem um pouco sensata a manutenção da vigência de atos administrativos oriundos do poder de polícia que foram fulminados pela prescrição, à exemplo do termo de embargo e da apreensão dos instrumentos supostamente utilizados na infração ambiental.

Aqui, ressalto alguns pontos de contrassenso e incoerência deste tipo de decisão, que cria um verdadeiro ato administrativo alienígena o qual, entre nós advogados, convencionamos chamar de “ato administrativo zumbi”, consubstanciado no ato viciado e nulo em sua essência, mas que permanece em vigor pelo livre convencimento motivado do julgador. É o ato administrativo sem corpo jurídico que o externe, porquanto reconhecida sua nulidade, mas cujos efeitos vagam como um zumbi pelo mundo dos fatos.

Num primeiro ponto, no que toca ao embargo, esta é uma sanção prevista no art. 72 da Lei 9.605/98, aplicada cautelarmente, enquanto não finalizada a persecução administrativa ambiental, com a finalidade de coibir a continuidade da infração. Ela também é aplicada em caráter sancionatório, após a irrecorrível decisão do procedimento administrativo. Logo, sendo uma sanção e sobrevindo a prescrição da pretensão punitiva estatal, o termo de embargo também deve ter sua prescrição reconhecida. Isso porque, reconhecida a prescrição do auto de infração que deu causa ao início da persecução, os seus consectários, por óbvio, devem lhe acompanhar.

Vejamos entendimento judicial neste sentido:

Com efeito, conforme recente entendimento firmado pelo Tribunal Regional Federal da Primeira Região, o reconhecimento da prescrição do Auto de Infração implica na prescrição de todos os atos dele derivados, dentre eles o Termo de Embargo. Vejamos:

ADMINISTRATIVO. AMBIENTAL. DESMATAMENTO. RECONHECIMENTO DA PRESCRIÇÃO DO AUTO DE INFRAÇÃO. PRESCRIÇÃO DOS ATOS DECORRENTES. TERMO DE EMBARGO. INSTAURAÇÃO DE PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO. EXCESSO DE PRAZO PARA JULGAMENTO. DEMORA INJUSTIFICADA. IMPOSSIBILIDADE. SENTENÇA MANTIDA. I – O IBAMA, no exercício regular do poder de polícia ambiental, detém, em perfeita sintonia com a tutela cautelar constitucionalmente prevista no art. 225, § 1º, V e respectivo § 3º, da Constituição Federal, atribuições para defender e preservar o meio ambiente ecologicamente equilibrado, como bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, para as presentes e futuras gerações (CF, art. 225, caput). II – A demora excessiva e injustificada do Poder Público para a análise do processo administrativo, sob pena de violação aos princípios da eficiência, da moralidade e da razoável duração do processo, conforme preceitua a Lei nº 9.784/99 e os dispositivos insertos nos artigos 5º, inciso LXXVIII e 37, caput, da Constituição Federal, que a todos assegura o direito à celeridade na tramitação dos procedimentos administrativos, a autorizar, na espécie, a suspensão dos efeitos do referido Termo de Embargo até julgamento do citado processo(antecipação de tutela confirmada na sentença). III – O Termo de Embargo/Interdição deriva da lavratura de Auto de Infração e, em sendo declarada a prescrição deste, todos os atos dele decorrentes também estão prescritos. IV Recurso de apelação interposto pelo IBAMA a que se nega provimento. (1000332-44.2017.4.01.3603, Rel. DESEMBARGADOR FEDERAL JIRAIR ARAM MEGUERIAN, DJ 23/07/2020)

Assim, deve ser admitida a juridicidade do reconhecimento da prescrição do Termo de Embargo, uma vez que provém de ato manifestamente prescrito.

Saliente-se, ademais, que o Tribunal Regional Federal da Primeira Região tem perfilhado entendimento de que a demora injustificada na conclusão do processo administrativo também permite o levantamento do termo de embargo incidente sobre a atividade do autuado, o qual não pode ficar indeterminadamente à mercê da administração, sem definição de sua situação em prazo razoável. Nesse sentido:

ADMINISTRATIVO. CONSTITUCIONAL. AMBIENTAL. AUTO DE INFRAÇÃO. TERMO DE EMBARGO. DESTRUIÇÃO DE VEGETAÇÃO NATIVA. PROCESSO ADMINISTRATIVO. AUSÊNCIA DE JULGAMENTO. EXCESSO DE PRAZO. RAZOABILIDADE. SUSPENSÃO DA MEDIDA RESTRITIVA. CABIMENTO.  I – Na hipótese dos autos, consta que o embargo da atividade econômica exercida pelo impetrante permanece por mais de um ano, sem que se tenha notícia do julgamento do respectivo processo administrativo, a demonstrar, assim, a demora excessiva e injustificada do Poder Público para a análise do processo administrativo, sob pena de violação aos princípios da eficiência, da moralidade e da razoável duração do processo, conforme preceitua a Lei nº 9.784/99 e os dispositivos insertos nos artigos 5º, inciso LXXVIII e 37, caput, da Constituição Federal, que a todos assegura o direito à celeridade na tramitação dos procedimentos administrativos, a autorizar, na espécie, a suspensão dos efeitos do referido Termo de Embargo até julgamento do citado processo.  II – Remessa oficial desprovida. Sentença confirmada. (REO 0002375-57.2015.4.01.3500 / GO, Rel. DESEMBARGADOR FEDERAL SOUZA PRUDENTE, Rel.Conv. JUIZ FEDERAL WALDEMAR CLAUDIO DE CARVALHO (CONV.), QUINTA TURMA, e-DJF1 p.911 de 18/11/2015)

Na hipótese dos autos, o decurso de mais de cinco anos sem que se tenha dado decisão definitiva e diante da ausência de justificativa para tanto, está configurada demora excessiva e injustificada por parte da administração, implicando ofensa ao princípio da duração razoável do processo e ao princípio da eficiência, o que faz incidir o entendimento acima.

O embargo, assim como outras sanções administrativas, poderá ser imposto cumulativamente ao infrator, caso as razões de fato assim determinarem.

Outrossim, a inclusão do nome do autuado na lista de pública de poluidores, não obstante tenha como finalidade precípua evitar o uso da área, provoca efeitos mais amplos e negativos ao autor, já que este passa a ostentar publicamente o atributo de infrator ambiental, o que acarreta graves prejuízos a sua atividade econômica.

Dessa forma, quer sob uma perspectiva formal ou substancial, o embargo administrativo possui caráter punitivo, ainda que não predominante, razão pela qual não se pode conceber sua imprescritibilidade. (1001934-94.2022.4.01.3603, 29/06/2022)

É bem verdade que o embargo pode ser aplicado como sanção autônoma, à exemplo de sua aplicação cautelarmente em área atingida por fogo, do qual não se pode, de imediato, atribuir culpabilidade à ação antrópica. Nesses casos não há lavratura de auto de infração, mas tão somente do termo de embargo.

O fato é que, mesmo nesta hipótese, o termo de embargo continua sendo um ato administrativo que retira sua legalidade e natureza jurídica do artigo 72 da Lei 9.605/98. É dizer: continua possuindo natureza jurídica de sanção administrativa prevista em lei, cuja apuração se dá em um procedimento administrativo (Lei 9.784/99), de modo que incidirá os efeitos da Lei 9.873/99.

Nesses casos, por exemplo, o embargo de natureza autônoma pode perdurar até que a área regenere e retome suas características anteriores (status quo ante), respeitado o devido processo legal e a confirmação da medida ou, caso o ente fiscalizador deixe o processo administrativo à mercê do tempo, atraindo a prescrição, a medida cautelar pode perfeitamente ser extinta, o que sobrevier primeiro, sob pena de violação à razoável duração do processo.

Num segundo ponto, a permanência do vigor de um ato administrativo sancionatório, de tamanha gravidade, prescrito, implica em criar um ato sui generis, sem natureza jurídica. Qual seria a natureza jurídica de um ato administrativo que retira sua validade de um procedimento prescrito? Não consigo imaginar. Assim, o entendimento que vigora nos Tribunais é o de que, ocorrida a prescrição no procedimento administrativo, o embargo também é fulminado pela prescrição. Neste sentido:

Sobre o tema, o Tribunal Regional Federal da Primeira Região, em decisão recente, confirmou sentença prolatada nesta subseção, firmando o entendimento de que: “o Termo de Embargo/Interdição deriva da lavratura de Auto de Infração e, em sendo declarada a prescrição deste, todos os atos dele decorrentes também estão prescritos”. A propósito:

ADMINISTRATIVO. AMBIENTAL. DESMATAMENTO. RECONHECIMENTO DA PRESCRIÇÃO DO AUTO DE INFRAÇÃO. PRESCRIÇÃO DOS ATOS DECORRENTES. TERMO DE EMBARGO. INSTAURAÇÃO DE PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO. EXCESSO DE PRAZO PARA JULGAMENTO. DEMORA INJUSTIFICADA. IMPOSSIBILIDADE. SENTENÇA MANTIDA. I O IBAMA, no exercício regular do poder de polícia ambiental, detém, em perfeita sintonia com a tutela cautelar constitucionalmente prevista no art. 225, § 1º, V e respectivo § 3º, da Constituição Federal, atribuições para defender e preservar o meio ambiente ecologicamente equilibrado, como bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, para as presentes e futuras gerações (CF, art. 225, caput). II A demora excessiva e injustificada do Poder Público para a análise do processo administrativo, sob pena de violação aos princípios da eficiência, da moralidade e da razoável duração do processo, conforme preceitua a Lei nº 9.784/99 e os dispositivos insertos nos artigos 5º, inciso LXXVIII e 37, caput, da Constituição Federal, que a todos assegura o direito à celeridade na tramitação dos procedimentos administrativos, a autorizar, na espécie, a suspensão dos efeitos do referido Termo de Embargo até julgamento do citado processo(antecipação de tutela confirmada na sentença) III O Termo de Embargo/ Interdição deriva da lavratura de Auto de Infração e, em sendo declarada a prescrição deste, todos os atos dele decorrentes também estão prescritos. IV Recurso de apelação interposto pelo IBAMA a que se nega provimento. (AC 1000332-44.2017.4.01.3603, DESEMBARGADOR FEDERAL JIRAIR ARAM MEGUERIAN, TRF1 – SEXTA TURMA, PJe 23/07/2020 PAG.)

Indo avante, há que se ressaltar que também sob o aspecto processual não se encontram fundamentos para a manutenção do embargo administrativo após a prescrição do processo administrativo.

O embargo imposto no início do processo administrativo, com arrimo no art. 101, § 1º do Decreto 6.514/2008, como já se disse, é medida de natureza cautelar, que pode ou não ser confirmada e se convolar em pena, nos termos do art. 72 da Lei 9.605/1998.

Ocorre que a medida cautelar é marcada por sua referibilidade para com o objeto do provimento final, que, no caso, depende do julgamento do processo administrativo, com contraditório efetivo e ampla defesa, o que já não é mais juridicamente possível no processo administrativo em questão, de onde nenhuma medida punitiva pode exsurgir, posto que acobertado pela prescrição.

Com efeito, se inexiste direito referido, no caso a pretensão punitiva da Administração, não há interesse jurídico a ser acautelado.

A propósito, é seguro dizer que se a Administração se utiliza do processo administrativo prescrito para qualquer finalidade, exerce um poder jurídico que já não possui, incorrendo, também, em ofensa ao princípio da legalidade.

É verdade que o art. 21, § 4º do Decreto 6.514/2008 dispõe que a prescrição da pretensão punitiva da administração não elide a obrigação de reparar o dano ambiental.

Contudo, a Lei 9.873/1999, que é a norma matriz sobre o tema, não fez nenhuma ressalva no que diz respeito à prescrição para o exercício do poder de polícia da Administração, portanto, o dispositivo regulamentar supracitado tem apenas o escopo de reafirmar a imprescritibilidade das obrigações de natureza civil.

Ademais, não há que se cogitar em proteção insuficiente decorrente do entendimento ora exposto, uma vez que a Administração ainda dispõe das medidas cautelares civis, caso deseje obter o mesmo resultado prático do embargo administrativo.

Nesse sentido, o art. 4º da Lei 7.347/1985 prevê a possibilidade do ajuizamento de ação cautelar preparatória da ação civil pública, com a finalidade de evitar o dano ao meio ambiente.

Com efeito, não se olvida que o autor eventualmente possa ser responsabilizado pela reparação civil do dano ambiental ocorrido na propriedade, vez que a responsabilidade, nesse caso, é objetiva, propter rem e imprescritível. Contudo, o mesmo não ocorre com relação às sanções administrativas, todas sujeitas aos prazos extintivos que conferem segurança às relações jurídicas.

Logo, é bastante plausível a alegação da parte autora, no sentido de que se abateu a prescrição sobre o direito de punir da Administração, dada a ausência de marcos interruptivos do prazo fatal desde a data em destaque. (1004542-65.2022.4.01.3603, 21/09/2022)

Num terceiro ponto, não se desconhece que a obrigação propter rem de recuperar o dano ambiental, de natureza cível, seja imprescritível. É o que se extrai da interpretação do art. 21, § 4º do Decreto 6.514/2008 dispõe que a prescrição da pretensão punitiva da administração não elide a obrigação de reparar o dano ambiental. Entretanto, não pode haver “mistura” de regimes jurídicos, de modo criar uma interpretação como esta, criando portar para aplicar uma sanção administrativa para resguardar uma obrigação de natureza cível. As instâncias são independentes.

Demais disso, quando o constituinte desejou tornar algum ato imprescritível, à exemplo do ressarcimento ao erário em caso de improbidade administrativa, expressamente o fez. Foi o caso da reparação civil do dano ambiental, que em leitura da Política Nacional do Meio Ambiente (Lei 6.938/81) e da Constituição Federal, é possível extrair a responsabilidade objetiva e independente de culpa na reparação civil. O mesmo não se pode dizer da sanção administrativa de embargo.

Assim, a equivocada interpretação de imprescritibilidade da sanção de embargo seria, em analogia, manter a prisão preventiva em um processo criminal prescrito para resguardar os efeitos civis de um crime de furto, acaso a obrigação de reparar o dano civil fosse imprescritível. Neste ponto, vale a pena colacionar o seguinte trecho de decisão judicial:

Não desconheço o entendimento recorrentemente defendido pela autarquia ambiental, no sentido de que o embargo de área teria natureza cível-cautelar e, portanto, seria imprescritível.

Porém, não perfilho desse entendimento. Explico:

Do próprio texto da Constituição Federal retira-se a ideia de que a autoria de danos ambientais pode culminar na responsabilização do infrator nas esferas penal, civil e administrativa, sendo certo, ademais, que no ordenamento jurídico brasileiro impera a autonomia das instâncias.

Art. 225. § 3º As condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos causados.

Mesmo antes da promulgação da Constituição Federal de 1.988, o art. 14, § 3º da Lei 6.938/1981 já previa que o poluidor é obrigado, independentemente da existência de culpa, a indenizar ou reparar os danos causados ao meio ambiente e a terceiros afetados por sua atividade, sem prejuízo das penalidades correspondentes.

Convém ainda relembrar que o e. Superior Tribunal de Justiça já demonstrou que a instância administrativa possui autonomia epistemológica em relação à instância cível, quando consignou que a responsabilidade administrativa por danos ambientais é pessoal e subjetiva, ao passo que a responsabilidade civil é solidária e objetiva.

Portanto, sob o ponto de vista do direito material, o embargo administrativo não pode prevalecer porque, ainda que exerça função cautelar, não deixa de ser uma medida decorrente do exercício do poder de polícia administrativa, e, portanto, sujeita-se ao regime jurídico de direito administrativo, inclusive no que diz respeito à prescrição. (1004542-65.2022.4.01.3603, 21/09/2022)

A propósito, Curt Trennepohl[1], ex-Procurador Federal e ex-Presidente do IBAMA compartilha do mesmo entendimento:

É importante observar o disposto no § 4°, pois ele é claro no sentido de que a prescrição atinge somente a sanção pecuniária ou outras sanções impostas administrativamente, não abrangendo a obrigação de reparar o dano causado ao meio ambiente, prevista no art. 225 da Constituição Federal, que pode e deve ser intentada a qualquer tempo.

A reparação do dano causado ao meio ambiente é imperativo constitucional e o decurso do prazo prescricional administrativo, por inércia do poder público, não pode afastar esta obrigação. Até mesmo porque a prescrição administrativa não vincula a Ação Civil Pública.

Num quarto ponto, é de se mencionar que inexiste obrigação de reparar o dano na esfera administrativa. Ou seja, prescrito o procedimento administrativo, sendo este processo o primeiro passo para que a pretensão punitiva estatal se legitime, todas as sanções apuradas naquele procedimento devem ser extintas.

Isso porque, como bem leciona o professor e amigo Dr. Cláudio Farenzena, não existe na Lei 9.605/98 a imposição ao particular de reparar o dano ambiental administrativamente e quiçá no Decreto 6.514/08, de modo que o autuado não pode cumprir uma medida sancionatória ou reparatória sem previsão legal. Assim, por exemplo, a decisão administrativa que impõe ao autuado a obrigação de reparar o dano ambiental é ilegal. Tal imposição deve ocorrer na seara adequada, que é na cível, em sede de ação civil pública.

Assim, como bem mencionado na decisão supra dos autos 1004542-65.2022.4.01.3603, não há que se cogitar em proteção insuficiente decorrente do entendimento ora exposto, uma vez que a Administração ainda dispõe das medidas cautelares civis, caso deseje obter o mesmo resultado prático do embargo administrativo. Nesse sentido, o art. 4º da Lei 7.347/1985 prevê a possibilidade do ajuizamento de ação cautelar preparatória da ação civil pública, com a finalidade de evitar o dano ao meio ambiente.

Nesse mesmo espeque, e sendo o quinto ponto de contrassenso de tal interpretação, o proprietário de área rural ou de qualquer outro empreendimento só pode operar caso possua as licenças adequadas. No caso de áreas rurais, a inscrição no Cadastro Ambiental Rural, que contém as informações sobre a vegetação e hidrografia da área, é o procedimento adequado para discutir a regularidade ambiental na seara administrativa, sendo certo que seu cadastro não será validado caso haja alguma irregularidade.

Demais disso, havendo constatação de irregularidades em sede de processamento do CAR, poderá o particular firmar termo de compromisso junto ao órgão fiscalizador, a fim de que, nos prazos ali previstos, regularize o passivo ambiental, sendo suspenso o termo de embargo até o cumprimento efetivo do compromisso ambiental.

Num sexto ponto, para fins de proteção ambiental, o infrator ainda pode ser autuado por impedir a regeneração natural da área ou, ainda, por exercer atividade potencialmente poluidora sem licença do órgão ambiental competente, sendo que, nesses casos, cabe nova aplicação de embargo, mas em razão destas infrações, e não daquela prescrita. Ora, se ele pode ser autuado por esta infração, é certo que o próprio sistema já erigiu maneiras de coibir o funcionamento da área degradada, e a proteção deve se dar por estes meios, e não de outras formas. Por fim, não é demais dizer que a área desembargada não significa área regular.

Num sétimo e último ponto de contrassenso, a responsabilidade subjetiva é intrínseca ao direito administrativo sancionatório e, no que toca à reparação de dano ambiental, a responsabilidade civil é objetiva e solidária, acompanhando a propriedade degradada. Não há que se confundir aqui, portanto, os institutos categóricos de responsabilidade administrativa e civil com a prescritibilidade e imprescritibilidade.

A prescritibilidade está relacionada com o direito administrativo sancionatório, ou seja, com a responsabilidade subjetiva; por sua vez, a imprescritibilidade está relacionada com a responsabilidade do proprietário, ainda que não seja o infrator, em reparar civilmente o dano. Aqui, nada pode uma sanção administrativa prescrita contribuir para a garantia do feito de reparação civil, cabendo ao Ministério Público competente pleitear em juízo a cautelar.

Assim, conclui-se que o entendimento jurídico de que a prescrição não atinge o termo de embargo é verdadeiramente um contrassenso e um desequilíbrio jurídico no que atine à preservação da boa interpretação, notadamente a independência das instâncias administrativas e cível. A esta, cabe a reparação do dano ambiental. Àquela, cabe a repressão ao cometimento de danos ambientais, e esta repressão é suscetível de ser fulminada pelo fenômeno prescricional, a teor da Lei 9.873/99 e do Decreto 6.514/08.

Não se pode, portanto, alimentar interpretações como esta, sob pena de colapsar os princípios que regem o direito administrativo, uma vez que todos os atos “vivos” que emanam do regime jurídico administrativo dependem de uma fonte normativa – princípio da legalidade. Assim, o embargo possui previsão normativa no art. 72 da Lei 9.605/98, devendo ser aplicado mediante a formalização de um procedimento administrativo que respeite os princípios administrativos e constitucionais, sendo certo que um deles é a razoável duração do processo (CF, art. 5, LXXVIII).

Conclui-se, portanto, que prescrita pretensão punitiva em razão de morosidade no procedimento administrativo, todos os efeitos que demandam deste processo devem ser extintos do ordenamento jurídico, sem prejuízo das adoções das medidas cíveis adequadas pela Administração em prol da recuperação do dano ambiental, sendo este entendimento princípio comezinho de Direito Administrativo Sancionador.

[1] Trennepohl, Curt; Trennepohl,Natascha; Trennepohl, Terence. Infrações ambientais: comentários ao Decreto 6.514/2008 . Edição do Kindle.

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